sábado, 27 de agosto de 2011

Sem título


“Tive um sono sem sonhos,” foi a primeira coisa que Edite disse para seu marido. Lá fora, perto da garagem, os garotos que andavam pela vizinhança na madrugada tinham espalhado o lixo da casa, mas não só o deles, naquele bairro, pelo menos três casas por rua tinham tido suas latas reviradas e o lixo espalhado em frente às casas; a cada dia escolhiam uma rua e iam espalhando o lixo, das fraldas geriátricas de seu Mateus, da casa 145, às fraldas e potes de papa do bebê do pastor Paulo, da casa 102, e os absorventes, potes de sorvete vazios e vídeos de exercícios que nunca haviam sido assistido por sua dona, do 178. “Isso nunca me ocorreu, sempre sonho”, ela disse enquanto o marido apenas olhava para o vazio.
Não adiantava dizer nada para Esídio, ao menos, naquela hora do dia. Os minutos para ele corriam mais devagar; o barulho das crianças não tinha nenhum efeito, as palavras de sua mulher não causavam nenhuma comoção. Levantar-se, escovar os dentes; fazia suas atividades diárias como programado. Caminhava em um andar descompassado, puxava a perna direita, um dois, um dois, os passos se desenrolavam como uma dança alquebrada em que um dos parceiros sempre deixava o outro para trás, enquanto o outro tentava acompanhar, não em desespero, apenas impassível, apenas tentando.  Ela aumentava a voz e repetia: “Tive um sono sem sonhos, isso nunca me ocorreu...”; sua voz não era autoritária, tinha firmeza; “é estranho, sonhos bons ou ruins, mas sempre sonho.”
Em suas atividades, Esídio sabia: vestir-se, era agora sua obrigação, sentar na poltrona, enquanto esperava Edite preparar o café, seu dever. Ela cantarolava uma música baixinho, uma melodia só para ela; ele nunca reconheceu a música e também nunca perguntou. Porém a melodia vinha diferente, agora mais alegre, rápida. Das poucas notas que ouviu, sabia que algo diferente havia acontecido; não lhe passou pela cabeça perguntar, sabia que algo diferente ocorrera, essa era sua certeza e bastava.
Olhando de relance pela janela, via os cachorros se amontoando no lixo espalhado. Da porta da sua casa já gritava contra a matilha, eles percorriam o asfalto deslizando conjuntamente em seu grupo com a cauda baixa. Depois de afastá-los, voltou para casa, pegou suas luvas e juntava os sacos espalhados com seu opróbrio. Malditos garotos, pensava enquanto o suor deslizava em sua têmpora, as luvas se entranhando ao odor do lixo que era seu, de Edite e de seus netos.  Pisou em falso, tentou se apoiar em sua perna boa, deslizou, esparramou-se pela calçada; seu sangue marcava o cimento da calçada, a mesma que havia sido feita com seu dinheiro. O filete percorria sua testa se misturando ao suor, manchava sua camisa e marcava o chão.
Sentado em uma das cadeiras da mesa da cozinha, Esídio esperava Edite trazer o álcool e o algodão. Não havia mais o que fazer, ele sabia que não melhoraria ao xingar os garotos; caso houvesse culpa, era sua, era de sua perna, sabia que ela não melhoraria com reprovações ou xingamentos, mas era de sua perna a culpa e se ela fazia parte dele, era ele o culpado por tudo, das marcas vermelhas em frente à sua casa ao fato de Edite procurar álcool e algodão e não encontrar. Ela passava vinagre na testa de Esídio e juntava as toalhinhas em torno do ferimento. Sentia a testa nodosa de seu marido; seus sulcos e marcas lhe davam a certeza da velhice, algo que os dois compartilhavam e ela sabia que era só dos dois.     

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