segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Lucidez

Autora: Yonne Santiago

Teu sorriso é um quebra-luz
Abajur a iluminar a dor
Ambrosia da minha alma
Alba que me remete à paz
Avis rara do meu amor

Soam as horas, suaves, sonoras
Ao bel-prazer dos tique-taques...
A vida passa, a vida fica,
A vida estaca e estica.
Do belvedere uma lágrima cai:
Acrobata dos tais recalques.

Bem-aventurado sorriso,
Berceuse dos meus sonhos,
Berloque que os colore e encanta.
Bálsamo dos meus calafrios é
Teu semblante que os deslumbra.
Acorda o desejo, da penumbra
Para o longe, a tristeza espanta
Abranda os pensamentos mais bisonhos
É tudo, teu bem-vindo sorriso.
Minha ternura, meu juízo.

Desajuste em Curral Del Rey – Parte II

No caminho Fred observava super irritado como estavam emporcalhadas as ruas, com latas de refrigerante atiradas no passeio*, copinhos de sorvete rolando no meio-fio, panfletos comerciais melados no bueiro presos ao óleo que escorria de alguma oficina e embalagens diversas capotadas no asfalto.

Não queria saber de olhar o movimento, casas, novas lojas, tampouco os carros importados que em outras ocasiões eram alvo garantido de seu contemplar.

Ao descer o viaduto, o moço de rosto quase colado no vidro e ainda cabisbaixo se deparou com um pôster de futebol amassado – provável encarte de algum jornal – e... daí lhe ocorreu a lembrança que naquela semana o Cruzeiro derrubara o favoritaço Palmeiras na final da Copa do Brasil. Acontecimento que para o coração alvinegro de Fred era bem amargo, mas cujas circunstâncias – e aí basta ver como a partida foi – ao seu intelecto já começavam a enviar a lição winstonchurchilliana do nunca desistir.

Voltou do Centro, trazido por Carlos, desta vez calculou não dar tempo de passar em casa, apressou-se em chegar ao Tiradentes, colégio onde estudava, também em Stª Tereza.

Na manhã seguinte Lu(como era chamado nosso herói de nome composto pelos familiares em casa quando estes se viam cansados demais para chamá-lo pelo prenome, ou exasperados ou mesmo aéreos) foi entregar uma pilha de roupas em cinco casas diferentes. E como estas ficavam pertinho uma da outra, ele foi a pé mesmo – enquanto Carlos ia visitar alguns clientes na Esplanada – deixando a pilha atrás do balcão de um nostálgico e modesto bar na Rua Salinas.

Agachou-se Lu virado de frente para o barril de chope artesanal, ao lado e a cerca de um metro e noventa do lugar onde Sô Gumercindo**, o dono, abria a portinhola de vidro e distribuía as que de madrugada haviam chegado côxinhas numa travessa. O entregador tinha o intuito de separar um jogo de blusas para a primeira casa situada atrás da Pracinha, um pouco mais afastada das outras, além do Oásis inclusive.

Rodeados estavam os dois, sem fregueses naquela quinta-feira às 8:09, por um conjunto de azulejos em dourado e vinho; na parede contígua ao balcão surgia colocado pelo filho do Sô Gumercindo um quadro da banda Os Mutantes no qual predominava a côr creme abrigando em baixo seu psicodélico marrom-escuro logotipo que há vinte e três anos esteve na moda e em cima seus componentes desvairados e de rostos felizes; na parede oposta ao balcão víamos uma prateleira de salgadinhos cujas gavetas quadradas em grade nos lembravam uma cestinha da Caloi fabricada nos anos 80, mesmo decênio da plaquinha ainda ostentada e parafusada à grade, indicando o produto Bocaditos com sua logomarca oitentista onde ferrugens pequenas se podiam notar.

* N.A.: no resto do Brasil acho que se diz calçada, porém em Belo Horizonte se diz passeio.

** N.A.: acho que em todo o resto do Brasil é Seu Gumercindo mesmo.

sábado, 27 de agosto de 2011

Sem título


“Tive um sono sem sonhos,” foi a primeira coisa que Edite disse para seu marido. Lá fora, perto da garagem, os garotos que andavam pela vizinhança na madrugada tinham espalhado o lixo da casa, mas não só o deles, naquele bairro, pelo menos três casas por rua tinham tido suas latas reviradas e o lixo espalhado em frente às casas; a cada dia escolhiam uma rua e iam espalhando o lixo, das fraldas geriátricas de seu Mateus, da casa 145, às fraldas e potes de papa do bebê do pastor Paulo, da casa 102, e os absorventes, potes de sorvete vazios e vídeos de exercícios que nunca haviam sido assistido por sua dona, do 178. “Isso nunca me ocorreu, sempre sonho”, ela disse enquanto o marido apenas olhava para o vazio.
Não adiantava dizer nada para Esídio, ao menos, naquela hora do dia. Os minutos para ele corriam mais devagar; o barulho das crianças não tinha nenhum efeito, as palavras de sua mulher não causavam nenhuma comoção. Levantar-se, escovar os dentes; fazia suas atividades diárias como programado. Caminhava em um andar descompassado, puxava a perna direita, um dois, um dois, os passos se desenrolavam como uma dança alquebrada em que um dos parceiros sempre deixava o outro para trás, enquanto o outro tentava acompanhar, não em desespero, apenas impassível, apenas tentando.  Ela aumentava a voz e repetia: “Tive um sono sem sonhos, isso nunca me ocorreu...”; sua voz não era autoritária, tinha firmeza; “é estranho, sonhos bons ou ruins, mas sempre sonho.”
Em suas atividades, Esídio sabia: vestir-se, era agora sua obrigação, sentar na poltrona, enquanto esperava Edite preparar o café, seu dever. Ela cantarolava uma música baixinho, uma melodia só para ela; ele nunca reconheceu a música e também nunca perguntou. Porém a melodia vinha diferente, agora mais alegre, rápida. Das poucas notas que ouviu, sabia que algo diferente havia acontecido; não lhe passou pela cabeça perguntar, sabia que algo diferente ocorrera, essa era sua certeza e bastava.
Olhando de relance pela janela, via os cachorros se amontoando no lixo espalhado. Da porta da sua casa já gritava contra a matilha, eles percorriam o asfalto deslizando conjuntamente em seu grupo com a cauda baixa. Depois de afastá-los, voltou para casa, pegou suas luvas e juntava os sacos espalhados com seu opróbrio. Malditos garotos, pensava enquanto o suor deslizava em sua têmpora, as luvas se entranhando ao odor do lixo que era seu, de Edite e de seus netos.  Pisou em falso, tentou se apoiar em sua perna boa, deslizou, esparramou-se pela calçada; seu sangue marcava o cimento da calçada, a mesma que havia sido feita com seu dinheiro. O filete percorria sua testa se misturando ao suor, manchava sua camisa e marcava o chão.
Sentado em uma das cadeiras da mesa da cozinha, Esídio esperava Edite trazer o álcool e o algodão. Não havia mais o que fazer, ele sabia que não melhoraria ao xingar os garotos; caso houvesse culpa, era sua, era de sua perna, sabia que ela não melhoraria com reprovações ou xingamentos, mas era de sua perna a culpa e se ela fazia parte dele, era ele o culpado por tudo, das marcas vermelhas em frente à sua casa ao fato de Edite procurar álcool e algodão e não encontrar. Ela passava vinagre na testa de Esídio e juntava as toalhinhas em torno do ferimento. Sentia a testa nodosa de seu marido; seus sulcos e marcas lhe davam a certeza da velhice, algo que os dois compartilhavam e ela sabia que era só dos dois.